sexta-feira, 22 de março de 2013

Água: a revolução de que precisamos

(Nesse Dia Mundial da Água, estou publicando novamente essa reflexão sobre o nosso papel na preservação dos Recursos Hídricos do planeta)
 

            A revolução de que precisamos não necessita de armas ou lideranças inflamadas gritando em praça pública. A revolução de que precisamos não necessita de projetos ultra-sofisticados ou da aplicação de tecnologias de última geração. A revolução de que precisamos não carece de salvadores da pátria ou da interferência de agentes externos. Podemos construir o novo através de atos simples. Podemos mudar a face do nosso país, do nosso estado, da nossa cidade aplicando a filosofia do saber cuidar. A ciência nos ensina que a vida começou na água. A revolução de que precisamos pode também se iniciar com a água: a água que sai das nossas torneiras; a água cristalina que utilizamos para matar a nossa sede; a água boa e tépida da qual fazemos uso para o nosso asseio diário; a água que respinga nas nossas janelas nos dias de chuva; a água que corre serena, ou vigorosa, pelos nossos rios; a água que retiramos do subsolo através dos poços e cacimbões; a água que nos alimenta; a água que limpa a sujeira por nós produzida.

A revolução que se faz necessária hoje deve brotar do coração de cada indivíduo, de cada pessoa, de cada cidadão. Ela deve se iniciar através do exercício do ato de perceber. Porque só atuamos de modo consciente sobre as coisas que percebemos, sobre aquilo a que prestamos a devida atenção. Precisamos, pois, prestar mais atenção sobre a importância da água nas nossas vidas, sobre o impacto da sua ausência na nossa qualidade de vida. Deveríamos estar nos questionando sempre: como seria a minha vida se eu só pudesse dispor de um terço da água de que disponho atualmente? Ou como seria a minha vida sem a disponibilidade de água de boa qualidade?

O passo seguinte, nesse processo de implementação da revolução que se faz necessária, diz respeito à formação de um conceito de valor para a água nossa de cada dia. Quanto vale o copo d’água que mata a nossa sede? Quanto vale o banho tranqüilo que tomamos no final de cada dia? Qual o valor da água que usamos para, por exemplo, escovar os nossos dentes? Não estamos nos referindo unicamente ao valor monetário desse bem que utilizamos diariamente, mas ao valor como elemento que contribui para a nossa qualidade de vida. Precisamos fazer esse exercício diário, na busca de construir uma escala de valor para a água nas nossas vidas.

Precisamos também trabalhar a nossa relação com a água. É fundamental que passemos de uma relação de mero consumidor para uma relação mais completa. Precisamos construir uma relação amorosa com a água. E a partir do estabelecimento desse “caso de amor”, desencadear as ações para a sua preservação e proteção. Porque só preservamos aquilo que conhecemos e só protegemos aquilo que amamos. Em síntese, os passos necessários para a contribuição efetiva de cada um de nós no processo de construção de um futuro seguro, em termos de disponibilidade do bem água para todos os segmentos sociais, envolvem as três ações referenciadas acima: perceber, valorar e amar. É essa a revolução de que precisamos, uma revolução de fórum íntimo, que viabilizará a grande revolução que se faz necessária: a proteção total dos mananciais de água do planeta.  

Retirado do livro "Pedagogia da Água". Autor: João de Deus Souto Filho.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Água: a herança que deixo

            É chegada minha hora. Não tenho mais forças para lutar contra esse câncer que consome as minhas entranhas. Há cinco anos venho tentando debelar esse mal terrível, sem nenhum sucesso. Só tenho aumentado a minha dor e prolongado o meu sofrimento. Estou exausto de tanta quimioterapia, das milhares de injeções que tomei, de tantas drogas que injetam diariamente nesse corpo que se transformou num amontoado de pele e ossos. Não suporto mais ver o olhar sofrido da minha querida esposa, não agüento mais ver a tristeza que tomou conta dos olhos dos meus queridos filhos, sinto saudade dos meus netos tão amados, que já não posso abraçar. Faço uso das minhas últimas energias para registrar o meu testamento.

            Enquanto a lucidez ainda está presente, registro aqui as minhas derradeiras palavras: mesmo tendo nascido em uma família humilde, tive todas as oportunidades que um homem pode ter na vida para obter sucesso. Meu pai, sertanejo rude e sem muitas letras, lutou bravamente para possibilitar os meus estudos. Ainda recordo as suas palavras: meu filho vai, um dia, ser “dotô”! E o sonho do velho sertanejo, meu pai, se realizou. Com muito sacrifício e dedicação me formei em medicina quando estava próximo de completar vinte e cinco anos. Dediquei esse feito ao meu querido e velho pai.

Os anos se passaram e eu não parei de investir no meu aperfeiçoamento profissional.  Tendo me especializado em cirurgia geral, fiz mestrado e doutorado em uma importante universidade dos Estados Unidos. Construí uma carreira invejável. Minha vida era a medicina. Tenho orgulho de afirmar que participei da explosão tecnológica ocorrida no século vinte. Vivenciei a era da tecnologia: pude acompanhar o desenvolvimento da informática e fiz uso das maravilhas computacionais desse século dourado; vi nascer o projeto genoma e participei de pesquisas no campo da genética e da nanotecnologia; contribuí diretamente para aumentar a longevidade das pessoas.

            Tudo teria sido perfeito, caso não tivesse cometido um erro que marcou a minha passagem pela Terra. Durante meu exercício profissional, me fechei no mundo da medicina. Para mim, a vida se restringia ao micro-universo do meu fazer profissional. E curando muitas doenças, salvando muitas vidas, fui me tornando alienado para o mundo à minha volta. Eu vivia numa grande cidade, mas eu não vivia a cidade. Os contrastes sociais, dentro da minha ótica reducionista, não eram um problema que me dizia respeito. A violência nas ruas era um problema apenas de segurança pública. As agressões ao meio ambiente eram vistas por mim como assunto de ambientalistas lunáticos que teimavam em querer salvar o planeta. As questões relacionadas com a poluição da água passavam distantes das minhas reflexões. Casei, tive três filhos e deixei a educação dos mesmos para as escolas que eu pagava a preço de ouro. Como profissional muito ocupado, participei pouco da educação dos meus filhos. Deixei essa tarefa para a minha querida esposa. E assim fui construindo a minha história de muito sucesso profissional e alienação quase que completa para com os problemas da cidade.

            O tempo passou e, de repente, veio a notícia que mudou o rumo da minha vida. Aos quarenta e cinco anos, eu estava com câncer no estômago. E aí começou a minha luta contra esse inimigo mortal. Utilizei todos os recursos e conhecimentos possíveis para debelar esse mal terrível. Tudo em vão. O tempo passou e minha saúde foi se agravando a cada dia. Mas, na busca de uma cura que não veio, pude descobrir a causa do câncer que consome o meu corpo segundo-a-segundo. Depois de muita leitura, de muita pesquisa, descobri que a origem do meu câncer estava relacionada com os alimentos crus que eu ingeri ao longo do tempo. Durante anos e anos fui sendo envenenado por produtos agrícolas que apresentavam alta concentração de agrotóxicos. As frutas, as verduras, os tubérculos que constituíam a base da minha alimentação estavam, na sua maioria, contaminados por pesticidas e herbicidas das mais diferentes espécies.

Passei então a refletir sobre a minha postura diante desse quadro de contaminação continuada dos alimentos. Uma postura de omissão para com os cuidados essenciais que devemos ter, em relação à preservação dos recursos naturais. E passei a prestar mais atenção sobre as agressões que o ser humano vem fazendo ao meio ambiente. Dei-me conta, então, que estou deixando uma herança maldita para os meus filhos e netos: o planeta está doente. Os rios estão quase todos poluídos, os lençóis subterrâneos encontram-se em processo avançado de degradação. E a minha geração, que investiu profundamente na superespecialização, não teve o cuidado de zelar pela saúde do planeta. A minha visão individualista de mundo dominou sobre o coletivo. Da mesma forma como fui contaminando pelos pesticidas e herbicidas, meus filhos e netos também estão. Matando o planeta aos poucos, nós cometemos um crime gigantesco contra a saúde da população mundial. Precisamos dar um basta nessa história que se repete desde a chamada revolução industrial. Assinado, um cidadão arrependido.   

Retirado do livro "Pedagogia da Água". Autor: João de Deus Souto Filho

sábado, 9 de março de 2013

Gestão das águas: a vez do cidadão

            A constituição de 1988 criou mecanismos concretos que possibilitam a participação efetiva do cidadão brasileiro na tomada de decisão sobre assuntos que afetam diretamente a sua qualidade de vida. Um exemplo disso é a gestão dos recursos hídricos.
 
            A legislação em vigor, que trata do planejamento e gestão das águas no Brasil (Lei Federal nº 9.433), adota como princípios básicos os seguintes elementos:
 
  • a bacia hidrográfica é tomada como unidade básica de planejamento, permitindo realizar com maior precisão o confronto entre as disponibilidades e as demandas de água no território nacional;
  • considera os múltiplos usos da água como parâmetro de referência, estabelecendo que todos os setores usuários de água têm igual acesso ao uso dos recursos hídricos;
  • reconhece que a água é um bem finito e vulnerável, e que por esse motivo precisa ser preservada;
  • reconhece o valor econômico da água, sendo o mesmo indutor do uso racional desse recurso natural, imprescindível para a vida e fundamental para o desenvolvimento sustentável; e
  • estabelece a filosofia da gestão descentralizada e participativa, o que significa dizer que tanto os usuários de água, quanto a sociedade organizada e as ONGs, juntamente com os órgãos municipais, estaduais e federais, podem influenciar diretamente no processo de tomada de decisão.

            Quanto aos mecanismos criados para a condução da política estadual de recursos hídricos, cabe registrar que cada estado da federação possui legislação específica, quase todos contemplando a seguinte estrutura organizacional:
 
  • Conselho Estadual de Recursos Hídricos;
  • Secretaria Estadual de Recursos Hídricos; e
  • Comitês de Bacias Hidrográficas.
          Resalta-se que dessas três entidades explicitadas acima, tanto o Conselho Estadual de Recursos Hídricos como os Comitês de Bacias Hidrográficas têm assentos reservados para representantes da sociedade organizada e usuários de água, com direito a voz e voto.

            Para termos uma idéia da força dessas entidades, que podem contar com a participação do cidadão comum, relacionamos abaixo as atribuições dos Comitês de Bacias Hidrográficas no estado do Rio Grande do Norte, conforme descrito no artigo 25 da lei 6908/96:
 
  • aprovar o Plano Estadual de Recursos Hídricos e suas atualizações, referente à respectiva Bacia Hidrográfica;
  • aprovar o Plano Diretor da Bacia Hidrográfica;
  • aprovar a proposta de programas anuais e plurianuais e aplicação de recursos financeiros em serviços e obras de interesse para a gestão de recursos hídricos da Bacia Hidrográfica;
  • acompanhar a execução do Plano Estadual de Recursos Hídricos e sugerir as providências necessárias ao cumprimento de suas metas, no âmbito da respectiva Bacia Hidrográfica;
  • aprovar o plano de aplicação dos recursos arrecadados com a cobrança pelo uso da água, destinados à respectiva Bacia Hidrográfica;
  • promover entendimentos, cooperação e conciliação entre os usuários dos recursos hídricos na bacia hidrográfica; e
  • avaliar e aprovar o relatório anual sobre a situação dos recursos hídricos da bacia hidrográfica.

            Como podemos ver, tanto a legislação federal quanto a estadual disponibilizam para nós, cidadãos, oportunidades concretas para participarmos das decisões sobre o gerenciamento e a preservação dos nossos mananciais de águas superficiais e subterrâneas. Cabe a nós a responsabilidade de exercermos esse direito respaldado por lei.

sábado, 2 de março de 2013

Comitê de Bacias Hidrográficas: o Parlamento das Águas

           Dentre as inovações trazidas pela legislação em vigor destacam-se os princípios da descentralização e da participação, que possibilitam o envolvimento direto dos diversos segmentos sociais na tomada de decisão sobre o uso e a preservação dos mananciais de água potável.

            Um novo organismo de gerenciamento dos recursos hídricos entrou em cena, a partir da publicação da lei federal 9.433, em 1997. Trata-se do Comitê de Bacia Hidrográfica, órgão com poderes deliberativos e normativos, que conta com representação de todas as esferas da sociedade.

            Os especialistas em gerenciamento de recursos hídricos reconhecem que “os Comitês de Bacias podem promover uma das maiores revoluções nos modelos de gestão pública do país”, ao viabilizarem a efetiva participação daqueles segmentos que têm as suas qualidades de vida afetadas em função da degradação ou da exploração predatória dos mananciais de água potável.

Cabe, diante desse novo cenário, prepararmos a sociedade para participar desse modelo inovador de gestão. E tudo começa com a divulgação do que vem a ser um Comitê de Bacia Hidrográfica, como será composto, quais as suas atribuições, como poderemos nos fazer representar neste “parlamento das águas”. Em outras palavras, precisa ser desencadeado um verdadeiro processo educativo, tendo como focos os diferentes segmentos da sociedade civil organizada, que se constituirão nos atores principais desta revolução que se inicia.

Um ponto importante precisa ser ressaltado: esse tema não interessa apenas às entidades ambientalistas. Será fundamental a participação de todos os segmentos da sociedade, como por exemplo, associações comunitárias, usuários de água, entidades de ensino e pesquisa, associações profissionais, representantes da indústria e do comércio, órgãos municipais e estaduais, ministério público, dentre outros.
 
Essa participação é que dará legitimidade aos Comitês de Bacias. Essa participação é que transformará os Comitês de Bacias em instrumentos efetivos de gestão dos recursos hídricos voltado para o bem comum. Sem a participação dos diferentes segmentos da sociedade organizada estaremos jogando fora a oportunidade singular de construirmos um novo perfil de órgão gestor que atenda as expectativas do cidadão. Participar é preciso. As cartas estão postas na mesa. Cabe agora exercermos a nossa cidadania.