domingo, 25 de novembro de 2012

A cidade: priorizando a qualidade de vida

                Natal não é mais como antigamente: a cidade está mais violenta, mais suja, mais barulhenta, o tráfego está cada vez mais complicado, os alagamentos estão aumentando a cada ano, as praias estão cada vez mais poluídas, nossos filhos não podem circular com segurança pelas ruas e praças, o número de favelas tem crescido exponencialmente ao longo dos anos, a degradação dos nossos mananciais de água potável alcança níveis insuportáveis. Que desenvolvimento urbano é esse que acaba prejudicando a qualidade de vida dos natalenses? Esse é o preço que devemos pagar pelo progresso? Existirá alguma saída para essa dicotomia “desenvolvimento versus redução da qualidade de vida urbana?”

            Esse fato, que se repete em todas as metrópoles brasileiras, tem sido objeto de discussão entre antropólogos, sociólogos, urbanistas e administradores públicos, ao longo dos anos. Há décadas esse assunto é debatido nas academias e nos fóruns especializados. Muitas fórmulas já foram pensadas, muitas promessas já foram feitas, porém quase nenhum sucesso foi obtido, conforme ilustram os exemplos a seguir: São Paulo de hoje está muito pior do que a São Paulo de duas décadas atrás; o Rio de Janeiro apresenta baixíssimos índices de qualidade de vida na atualidade; em Recife, a violência urbana e a degradação ambiental preocupam as autoridades locais. Em suma, tem piorado a qualidade de vida dos moradores das grandes cidades.

            Onde estamos falhando, como sociedade organizada que dispõe de todos os instrumentos (materiais, tecnológicos, legais) para a solução desse problema? O problema é apenas de administração pública? A nossa qualidade de vida reflete exclusivamente a qualidade dos nossos administradores públicos? Se assim for, por que dispomos de administradores públicos tão incompetentes, tão descompromissados com os reais interesses da população? Neste caso específico, deveríamos ser mais seletivos na escolha de prefeitos e vereadores, priorizando os interesses da cidade, em vez de buscar o favorecimento de grupos interessados em manter o domínio da política local, como temos observado nas últimas três décadas.

            Mas a questão fundamental, no meu entender, não é essa. O que tem faltado, de fato, é a participação dos diferentes segmentos sociais nos destinos da cidade. A sociedade, que vive na cidade, que se utiliza da cidade, que circula na cidade, que faz uso da infraestrutura da cidade, tem estado ausente dos fóruns que definem o planejamento e que fiscalizam a aplicação dos recursos destinados para a melhoria da cidade.

As entidades de classe, por exemplo, os Conselhos Regionais das diferentes categorias profissionais, preocupam-se quase que exclusivamente com as questões burocráticas de fiscalização, deixando de exercer com mais intensidade os seus papéis de agentes promotores da qualidade de vida. Além dessa visão reducionista, as entidades de classe interagem muito pouco entre si. Em outras palavras, a cidade não é tomada como uma prioridade, quando o assunto diz respeito à melhoria da qualidade de vida nos núcleos urbanos. As prioridades são os interesses isolados de cada categoria profissional. Há cinco anos, venho participando do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do RN (CREA), na qualidade de conselheiro e representante de entidade, e nesse período nunca presenciei um encontro entre CREA, OAB, CRM e demais Conselhos Regionais para discutirem o futuro da cidade e definirem ações conjuntas para a busca de soluções de interesse comum. As fiscalizações integradas já ocorrem em Natal, o que constitui um ponto positivo, porém estou me referindo a uma participação mais ampla, que tenha alcance social mais abrangente.  É certo que existem participantes dessas entidades nos vários Conselhos existentes, como por exemplo, no COMPLAN, no CONSAB, no CONERH, no CONEMA, contudo o nível de interação entre os representantes é muito baixo, propiciando a defesa dos interesses difusos e quase sempre corporativistas.
Esse mesmo modelo é replicado para os cidadãos potiguares, com o predomínio da visão individualista. A qualidade de vida na cidade, via de regra, não é tida como uma prioridade, que mereça uma participação mais efetiva. Ela é considerada como algo de responsabilidade exclusiva do estado. Na visão da maioria, as suas obrigações como cidadãos se restringem ao ato de pagar os impostos cobrados e de depositar os votos nas urnas. E com essa ausência do cidadão, na chamada Gerência Participativa da Cidade, os administradores públicos descompromissados e os políticos mal intencionados seguem descumprindo as suas obrigações como representantes do povo. Admitamos ou não, a cidade onde vivemos tem a nossa cara, reflete o nosso modo de encarar a vida. E se sonhamos com uma vida melhor, devemos participar da construção de uma cidade mais humana, de uma cidade mais digna, de uma cidade mais harmônica com o meio físico em que ela se encontra.  

Retirado do livro "Pedagogia da Água"
Autor: João de Deus Souto Filho

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Perceber a cidade: um ato de amor e cidadania

           Levei muito tempo para olhar a cidade com olhos de observador atento. A beleza que existe na cidade era, até pouco tempo, invisível para mim. Eu não vivia a cidade, passava por ela como autômato. Eu não olhava a cidade como alguém que faz parte dela. Eu estava cego para a beleza da cidade. O mar para mim era apenas um lugar comum: águas sem muito significado, quase estáticas para o meu olhar cristalizado. O Potengi, que divide a cidade ao meio, não era percebido por mim. Não era um rio, era apenas um nome sem muito significado. As dunas e suas ondulações não estimulavam o meu frio olhar. Os casarios, as ruas, o mercado, a feira e tantos outros elementos que dão vida à cidade não tinham valor quase nenhum. Era eu e minha solidão, fruto desse meu vazio olhar. Eu também não ouvia os sons da cidade. Aliás, existia um único som para mim, nessa cidade sem rosto e sem cor, o som indistinto que não passava do “barulho da cidade”.

Foi preciso um susto para eu começar a perceber a cidade. Um susto provocado pelo questionamento de uma criança ávida por respostas. Fui acordado de um sono letárgico pela sutil pergunta: “Painho, por que a nossa cidade está tão suja? Painho, a nossa cidade já teve natureza?” Fiquei sem saber responder ao inusitado questionamento. A palavra presa na garganta, um vazio insólito, uma vergonha pela falta do que dizer honestamente. Respondi, então: acho que teve, minha filha querida. E aquele susto abriu, definitivamente, os meus sentidos para a cidade.

Passei a olhar para a cidade com os olhos da curiosidade, com os olhos do interesse, de quem procura desvendar o desconhecido. Passei a ouvir os distintos sons da cidade da minha vida. Aos poucos, fui descobrindo o belo que existe na minha cidade: as ruas e suas curvas; os casarios de tempos idos; as dunas e seus tons doirados; o parque, o majestoso parque da dunas que emolduram a zona mais habitada da cidade; a via costeira, nossa janela para o Atlântico; e as praias, quantas belas praias. Senti, então, renascer em mim o amor pela cidade. Passei a pulsar com ela, carne e coração de um mesmo organismo.

Meu atento olhar foi-se aprofundando pelas fendas que antes eu sequer tinha idéia de que existia. Tive contato, enfim, com a parte feia da cidade, com a parte suja, com a parte desmantelada, com as feridas dessa cidade que agora era parte de mim. Vi a ocupação desordenada do solo na periferia da cidade; vi as favelas e sua gente pobre e tão carente; vi tanto esgoto a céu aberto que me senti de alma suja; vi, escandalizado, o despejo diário de dezenas de toneladas de esgoto, sem nenhum tipo de tratamento, no Potengi; vi a cidade sendo impermeabilizada e os alagamentos freqüentes denunciando que alguma coisa estava errada na forma de ocupação dos espaços; vi, por fim, a boa água da minha cidade, a água dos lençóis subterrâneos, sendo contaminada.
 
Meu coração estremeceu, com tantas mazelas. Chorei ao tomar consciência de que minha omissão contribuía para o agravamento dos problemas da cidade. Desde então, passei a trabalhar pelo bem da minha cidadela. Não como um funcionário da prefeitura, mas como um cidadão capaz de contribuir para a melhoria da qualidade de vida nesta cidade tão singular, a cidade dos meus sonhos, onde escrevo a minha história.

Retirado do livro "Pedagogia da Água"
Autor: João de Deus Souto Filho