quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Perceber a cidade: um ato de amor e cidadania

           Levei muito tempo para olhar a cidade com olhos de observador atento. A beleza que existe na cidade era, até pouco tempo, invisível para mim. Eu não vivia a cidade, passava por ela como autômato. Eu não olhava a cidade como alguém que faz parte dela. Eu estava cego para a beleza da cidade. O mar para mim era apenas um lugar comum: águas sem muito significado, quase estáticas para o meu olhar cristalizado. O Potengi, que divide a cidade ao meio, não era percebido por mim. Não era um rio, era apenas um nome sem muito significado. As dunas e suas ondulações não estimulavam o meu frio olhar. Os casarios, as ruas, o mercado, a feira e tantos outros elementos que dão vida à cidade não tinham valor quase nenhum. Era eu e minha solidão, fruto desse meu vazio olhar. Eu também não ouvia os sons da cidade. Aliás, existia um único som para mim, nessa cidade sem rosto e sem cor, o som indistinto que não passava do “barulho da cidade”.

Foi preciso um susto para eu começar a perceber a cidade. Um susto provocado pelo questionamento de uma criança ávida por respostas. Fui acordado de um sono letárgico pela sutil pergunta: “Painho, por que a nossa cidade está tão suja? Painho, a nossa cidade já teve natureza?” Fiquei sem saber responder ao inusitado questionamento. A palavra presa na garganta, um vazio insólito, uma vergonha pela falta do que dizer honestamente. Respondi, então: acho que teve, minha filha querida. E aquele susto abriu, definitivamente, os meus sentidos para a cidade.

Passei a olhar para a cidade com os olhos da curiosidade, com os olhos do interesse, de quem procura desvendar o desconhecido. Passei a ouvir os distintos sons da cidade da minha vida. Aos poucos, fui descobrindo o belo que existe na minha cidade: as ruas e suas curvas; os casarios de tempos idos; as dunas e seus tons doirados; o parque, o majestoso parque da dunas que emolduram a zona mais habitada da cidade; a via costeira, nossa janela para o Atlântico; e as praias, quantas belas praias. Senti, então, renascer em mim o amor pela cidade. Passei a pulsar com ela, carne e coração de um mesmo organismo.

Meu atento olhar foi-se aprofundando pelas fendas que antes eu sequer tinha idéia de que existia. Tive contato, enfim, com a parte feia da cidade, com a parte suja, com a parte desmantelada, com as feridas dessa cidade que agora era parte de mim. Vi a ocupação desordenada do solo na periferia da cidade; vi as favelas e sua gente pobre e tão carente; vi tanto esgoto a céu aberto que me senti de alma suja; vi, escandalizado, o despejo diário de dezenas de toneladas de esgoto, sem nenhum tipo de tratamento, no Potengi; vi a cidade sendo impermeabilizada e os alagamentos freqüentes denunciando que alguma coisa estava errada na forma de ocupação dos espaços; vi, por fim, a boa água da minha cidade, a água dos lençóis subterrâneos, sendo contaminada.
 
Meu coração estremeceu, com tantas mazelas. Chorei ao tomar consciência de que minha omissão contribuía para o agravamento dos problemas da cidade. Desde então, passei a trabalhar pelo bem da minha cidadela. Não como um funcionário da prefeitura, mas como um cidadão capaz de contribuir para a melhoria da qualidade de vida nesta cidade tão singular, a cidade dos meus sonhos, onde escrevo a minha história.

Retirado do livro "Pedagogia da Água"
Autor: João de Deus Souto Filho

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