Água: a herança que deixo
É chegada minha hora. Não tenho mais
forças para lutar contra esse câncer que consome as minhas entranhas. Há cinco
anos venho tentando debelar esse mal terrível, sem nenhum sucesso. Só tenho
aumentado a minha dor e prolongado o meu sofrimento. Estou exausto de tanta
quimioterapia, das milhares de injeções que tomei, de tantas drogas que injetam
diariamente nesse corpo que se transformou num amontoado de pele e ossos. Não
suporto mais ver o olhar sofrido da minha querida esposa, não agüento mais ver
a tristeza que tomou conta dos olhos dos meus queridos filhos, sinto saudade
dos meus netos tão amados, que já não posso abraçar. Faço uso das minhas
últimas energias para registrar o meu testamento.
Retirado do livro "Pedagogia da Água". Autor: João de Deus Souto Filho
Enquanto
a lucidez ainda está presente, registro aqui as minhas derradeiras palavras:
mesmo tendo nascido em uma família humilde, tive todas as oportunidades que um homem
pode ter na vida para obter sucesso. Meu pai, sertanejo rude e sem muitas
letras, lutou bravamente para possibilitar os meus estudos. Ainda recordo as
suas palavras: meu filho vai, um dia, ser “dotô”! E o sonho do velho sertanejo,
meu pai, se realizou. Com muito sacrifício e dedicação me formei em medicina
quando estava próximo de completar vinte e cinco anos. Dediquei esse feito ao
meu querido e velho pai.
Os
anos se passaram e eu não parei de investir no meu aperfeiçoamento
profissional. Tendo me especializado em
cirurgia geral, fiz mestrado e doutorado em uma importante universidade dos
Estados Unidos. Construí uma carreira invejável. Minha vida era a medicina.
Tenho orgulho de afirmar que participei da explosão tecnológica ocorrida no
século vinte. Vivenciei a era da tecnologia: pude acompanhar o desenvolvimento
da informática e fiz uso das maravilhas computacionais desse século dourado; vi
nascer o projeto genoma e participei de pesquisas no campo da genética e da
nanotecnologia; contribuí diretamente para aumentar a longevidade das pessoas.
Tudo teria sido perfeito, caso não
tivesse cometido um erro que marcou a minha passagem pela Terra. Durante meu
exercício profissional, me fechei no mundo da medicina. Para mim, a vida se
restringia ao micro-universo do meu fazer profissional. E curando muitas
doenças, salvando muitas vidas, fui me tornando alienado para o mundo à minha
volta. Eu vivia numa grande cidade, mas eu não vivia a cidade. Os contrastes
sociais, dentro da minha ótica reducionista, não eram um problema que me dizia
respeito. A violência nas ruas era um problema apenas de segurança pública. As
agressões ao meio ambiente eram vistas por mim como assunto de ambientalistas
lunáticos que teimavam em querer salvar o planeta. As questões relacionadas com
a poluição da água passavam distantes das minhas reflexões. Casei, tive três
filhos e deixei a educação dos mesmos para as escolas que eu pagava a preço de
ouro. Como profissional muito ocupado, participei pouco da educação dos meus
filhos. Deixei essa tarefa para a minha querida esposa. E assim fui construindo
a minha história de muito sucesso profissional e alienação quase que completa
para com os problemas da cidade.
O tempo passou e, de repente, veio a
notícia que mudou o rumo da minha vida. Aos quarenta e cinco anos, eu estava
com câncer no estômago. E aí começou a minha luta contra esse inimigo mortal.
Utilizei todos os recursos e conhecimentos possíveis para debelar esse mal
terrível. Tudo em vão. O
tempo passou e minha saúde foi se agravando a cada dia. Mas, na busca de uma
cura que não veio, pude descobrir a causa do câncer que consome o meu corpo
segundo-a-segundo. Depois de muita leitura, de muita pesquisa, descobri que a
origem do meu câncer estava relacionada com os alimentos crus que eu ingeri ao
longo do tempo. Durante anos e anos fui sendo envenenado por produtos agrícolas
que apresentavam alta concentração de agrotóxicos. As frutas, as verduras, os
tubérculos que constituíam a base da minha alimentação estavam, na sua maioria,
contaminados por pesticidas e herbicidas das mais diferentes espécies.
Passei
então a refletir sobre a minha postura diante desse quadro de contaminação
continuada dos alimentos. Uma postura de omissão para com os cuidados
essenciais que devemos ter, em relação à preservação dos recursos naturais. E
passei a prestar mais atenção sobre as agressões que o ser humano vem fazendo
ao meio ambiente. Dei-me conta, então, que estou deixando uma herança maldita
para os meus filhos e netos: o planeta está doente. Os rios estão quase todos
poluídos, os lençóis subterrâneos encontram-se em processo avançado de
degradação. E a minha geração, que investiu profundamente na
superespecialização, não teve o cuidado de zelar pela saúde do planeta. A minha
visão individualista de mundo dominou sobre o coletivo. Da mesma forma como fui
contaminando pelos pesticidas e herbicidas, meus filhos e netos também estão.
Matando o planeta aos poucos, nós cometemos um crime gigantesco contra a saúde
da população mundial. Precisamos dar um basta nessa história que se repete
desde a chamada revolução industrial. Assinado, um cidadão arrependido.
Retirado do livro "Pedagogia da Água". Autor: João de Deus Souto Filho
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