quarta-feira, 20 de março de 2013

Água: a herança que deixo

            É chegada minha hora. Não tenho mais forças para lutar contra esse câncer que consome as minhas entranhas. Há cinco anos venho tentando debelar esse mal terrível, sem nenhum sucesso. Só tenho aumentado a minha dor e prolongado o meu sofrimento. Estou exausto de tanta quimioterapia, das milhares de injeções que tomei, de tantas drogas que injetam diariamente nesse corpo que se transformou num amontoado de pele e ossos. Não suporto mais ver o olhar sofrido da minha querida esposa, não agüento mais ver a tristeza que tomou conta dos olhos dos meus queridos filhos, sinto saudade dos meus netos tão amados, que já não posso abraçar. Faço uso das minhas últimas energias para registrar o meu testamento.

            Enquanto a lucidez ainda está presente, registro aqui as minhas derradeiras palavras: mesmo tendo nascido em uma família humilde, tive todas as oportunidades que um homem pode ter na vida para obter sucesso. Meu pai, sertanejo rude e sem muitas letras, lutou bravamente para possibilitar os meus estudos. Ainda recordo as suas palavras: meu filho vai, um dia, ser “dotô”! E o sonho do velho sertanejo, meu pai, se realizou. Com muito sacrifício e dedicação me formei em medicina quando estava próximo de completar vinte e cinco anos. Dediquei esse feito ao meu querido e velho pai.

Os anos se passaram e eu não parei de investir no meu aperfeiçoamento profissional.  Tendo me especializado em cirurgia geral, fiz mestrado e doutorado em uma importante universidade dos Estados Unidos. Construí uma carreira invejável. Minha vida era a medicina. Tenho orgulho de afirmar que participei da explosão tecnológica ocorrida no século vinte. Vivenciei a era da tecnologia: pude acompanhar o desenvolvimento da informática e fiz uso das maravilhas computacionais desse século dourado; vi nascer o projeto genoma e participei de pesquisas no campo da genética e da nanotecnologia; contribuí diretamente para aumentar a longevidade das pessoas.

            Tudo teria sido perfeito, caso não tivesse cometido um erro que marcou a minha passagem pela Terra. Durante meu exercício profissional, me fechei no mundo da medicina. Para mim, a vida se restringia ao micro-universo do meu fazer profissional. E curando muitas doenças, salvando muitas vidas, fui me tornando alienado para o mundo à minha volta. Eu vivia numa grande cidade, mas eu não vivia a cidade. Os contrastes sociais, dentro da minha ótica reducionista, não eram um problema que me dizia respeito. A violência nas ruas era um problema apenas de segurança pública. As agressões ao meio ambiente eram vistas por mim como assunto de ambientalistas lunáticos que teimavam em querer salvar o planeta. As questões relacionadas com a poluição da água passavam distantes das minhas reflexões. Casei, tive três filhos e deixei a educação dos mesmos para as escolas que eu pagava a preço de ouro. Como profissional muito ocupado, participei pouco da educação dos meus filhos. Deixei essa tarefa para a minha querida esposa. E assim fui construindo a minha história de muito sucesso profissional e alienação quase que completa para com os problemas da cidade.

            O tempo passou e, de repente, veio a notícia que mudou o rumo da minha vida. Aos quarenta e cinco anos, eu estava com câncer no estômago. E aí começou a minha luta contra esse inimigo mortal. Utilizei todos os recursos e conhecimentos possíveis para debelar esse mal terrível. Tudo em vão. O tempo passou e minha saúde foi se agravando a cada dia. Mas, na busca de uma cura que não veio, pude descobrir a causa do câncer que consome o meu corpo segundo-a-segundo. Depois de muita leitura, de muita pesquisa, descobri que a origem do meu câncer estava relacionada com os alimentos crus que eu ingeri ao longo do tempo. Durante anos e anos fui sendo envenenado por produtos agrícolas que apresentavam alta concentração de agrotóxicos. As frutas, as verduras, os tubérculos que constituíam a base da minha alimentação estavam, na sua maioria, contaminados por pesticidas e herbicidas das mais diferentes espécies.

Passei então a refletir sobre a minha postura diante desse quadro de contaminação continuada dos alimentos. Uma postura de omissão para com os cuidados essenciais que devemos ter, em relação à preservação dos recursos naturais. E passei a prestar mais atenção sobre as agressões que o ser humano vem fazendo ao meio ambiente. Dei-me conta, então, que estou deixando uma herança maldita para os meus filhos e netos: o planeta está doente. Os rios estão quase todos poluídos, os lençóis subterrâneos encontram-se em processo avançado de degradação. E a minha geração, que investiu profundamente na superespecialização, não teve o cuidado de zelar pela saúde do planeta. A minha visão individualista de mundo dominou sobre o coletivo. Da mesma forma como fui contaminando pelos pesticidas e herbicidas, meus filhos e netos também estão. Matando o planeta aos poucos, nós cometemos um crime gigantesco contra a saúde da população mundial. Precisamos dar um basta nessa história que se repete desde a chamada revolução industrial. Assinado, um cidadão arrependido.   

Retirado do livro "Pedagogia da Água". Autor: João de Deus Souto Filho

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