domingo, 16 de março de 2014

Do rio que habita a poesia

No poema de João Cabral de Melo Neto o rio que muitas vezes deixamos de perceber. O rio que dá vida a milhares de cidades; o rio, que mesmo não sendo perene, como muitos rios do Nordeste do Brasil, alimentam a esperança daqueles que padecem da falta de água.

O Cão Sem Plumas

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.


O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.


Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.


Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.

Sabia da lama
como de uma mucosa.


Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.


Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

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