sábado, 3 de março de 2012

Das nossas relações e responsabilidades

Que cuidado estamos tendo com o mundo à nossa volta? A teia da vida nos ensina que tudo está interligado nesse complexo sistema do qual fazemos parte. Existe interação permanente entre as partes que constituem esse todo que denominamos Terra. Os oceanos interagem com as grandes massas continentais, as florestas trocam energia com as regiões desérticas, a cidade interage com os meios naturais à sua volta. O ciclo das rochas renova o material sólido do planeta, que interage com o ciclo das águas, que intercambia com o ciclo do carbono. A vida só é viável com as trocas que a natureza possibilita. Não existe isolamento entre as partes desse imenso organismo que é nossa morada.
Nós, humanos, apesar de sermos seres sociais por excelência, estamos experimentando o lado negativo da “visão reducionista de mundo”. Os núcleos urbanos estão cada vez mais degradados, o contingente de excluídos aumenta assustadoramente e o meio ambiente já não suporta tanta agressão. A cultura ocidental, construída a partir da chamada “revolução industrial”, acentuou a segregação e estimulou o isolamento entre os diferentes segmentos da sociedade. As universidades investiram maciçamente na formação de especialistas e, junto com os especialistas, surgiram os profissionais individualistas, aqueles que só interagem com seus pares, que só enxergam o seu mundo particular, que só valorizam o seu fazer ultra-especializado, que não admitem compartilhar experiências com profissionais ou pessoas de outras especialidades.
Os médicos, por exemplo, passaram a viver em grupos seletos: o grupo dos cardiologistas, o grupo dos neurologistas, o grupo dos pediatras, o grupo dos cirurgiões plásticos, o grupo dos nefrologistas e tantos outros “istas”. Os engenheiros, de modo semelhante, passaram a se organizar segundo as especialidades: os engenheiros civis, os engenheiros eletricistas, os engenheiros navais, os engenheiros agrônomos e tantas engenharias mais. Os advogados, acompanhando a tendência mundial, criaram as suas especialidades: o advogado tributarista, o advogado criminalista, o advogado de relações internacionais, o advogado dos direitos da família e tantas advocacias mais. Ocorreu o mesmo com a geologia, com a arquitetura, com a odontologia, com a geografia, com a economia, com a sociologia e com as demais ciências humanas. Até na administração pública essa visão segmentada se cristalizou, e surgiram as secretarias de saúde, de transporte, de educação, de segurança e tantas outras secretarias por demais especializadas. Cabe a ressalva de que na maioria das vezes essas secretarias funcionam como órgãos isolados, apresentando baixíssimo grau de interação.
E assim fomos construindo a cultura da especialização, que foi acompanhada pela incorporação de novos hábitos, terminologias específicas, novas linguagens e novos valores. Os médicos passaram a se relacionar quase que exclusivamente com os médicos, o mesmo ocorrendo com os engenheiros, os advogados, os odontólogos, os geólogos, os agrônomos, os físicos. Esse fato se repetiu com os comerciantes, os industriários, os banqueiros. Essa tendência se alastrou como uma doença contagiante, e os laços que existiam entre os elementos que compõem o tecido social foram se desfazendo, foram perdendo força.
A visão individualista passou a predominar. A lógica do “salve-se quem puder” virou lugar comum, passando a dominar o consciente popular. O espírito de cooperação perdeu terreno. No discurso diário, passamos a ouvir que “a responsabilidade pelas mazelas da sociedade é sempre do outro (ou dos outros)”. Passou a vigorar a visão de que “o mundo está assim porque os outros não prestam”. Ouvimos com freqüência “eu não degrado o meio ambiente, quem degrada é o outro”. Se a cidade está suja não é culpa minha, a responsabilidade é do outro. A violência urbana que ameaça a minha integridade também não é culpa minha, é do estado, é do meu vizinho, é do outro.
Perdemos a identidade com o Estado e transferimos as nossas responsabilidades de cidadãos para os políticos que, de representantes do povo, passaram a atuar como defensores de interesses particulares. Esquecemos até de exercer o nosso sagrado direito de exigir responsabilidade com a coisa pública. E com essa postura omissa, acentuada por uma visão individualista de mundo, formamos um quadro de políticos viciados em atos ilícitos. Permitimos que a corrupção passasse a ser vista como algo natural no meio político. Alimentamos castas de aproveitadores que criaram verdadeiros impérios no cenário político nacional.
Se pensamos em mudar esse estado de coisas, precisamos resgatar as relações perdidas. Precisamos romper a bolha que criamos ao nosso redor, ampliando assim as nossas relações com o mundo que está à nossa volta. Vamos abrir as portas das nossas especialidades, vamos trocar experiências de forma mais aberta. É possível, sim, o diálogo franco entre médicos, engenheiros, advogados, geólogos, arquitetos, educadores das mais diversas áreas do conhecimento. Por que não buscamos a complementação, em vez de ampliarmos as diferenças geradas pelas especializações? Os órgãos municipais e estaduais precisam interagir mais, para o efetivo funcionamento do estado, visando ao bem público. Podemos construir um mundo melhor renovando e aperfeiçoando as nossas relações. Não custa repetir: a teia da vida nos ensina que tudo está interligado nesse complexo sistema do qual fazemos parte. Se queremos melhorar a nossa qualidade de vida, precisamos nos incluir como responsáveis nesse cenário tão carente de soluções multidisciplinares. O individualismo excessivo e o isolamento não nos conduzirão ao crescimento como seres sociais.

Retirado do livro "Pedagogia da Água".
Autor: João de Deus Souto Filho

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